Black Mirror é reconhecida por trazer cenários distópicos onde a tecnologia é levada até as últimas consequências e em “Men Against Fire” não é diferente. O quinto episódio da terceira temporada da série americana apresenta Stripe, um soldado novato que nunca foi a campo, e uma discussão sobre institucionalização, poder, controle e percepção de realidade.
A história inicia com Stripe sendo enviado, junto a outros colegas, a uma aldeia atacada por “baratas”, criaturas humanoides que são apresentadas como a maior ameaça para o povo desses soldados. O cenário é de guerra e o grupo tem a missão de ir a esse vilarejo para “limpá-lo” dos seres que tomaram o local. Já em sua primeira missão, Stripe consegue matar duas baratas que haviam invadido a aldeia. Porém, ao encarar um objeto luminoso emitindo som em alta frequência, ele passa a sentir dores de cabeça e tonturas. Assim, ao retornar para o quartel, em meio à sua rotina de treinamentos, começa a se sentir mal, acaba encaminhado a um médico e, em sequência, a um psicólogo que terminam por dispensa-lo pois está tudo certo.
Os debates do episódio iniciam quando descobrimos a causa dos “blackouts” de Stripe. Todos os militares possuem um chip instalado em seus cérebros responsável por alterar sua noção de realidade, e o aparelho que o soldado encarou em sua primeira missão havia desconfigurado esse chip. Por um lado o aparelho proporcionava um alto nível de interatividade tecnológica e, por outro, funcionava como um forte instrumento de controle dos soldados. Os implantes bloqueavam qualquer tipo de sensação básica – como olfato, por exemplo – e até os sonhos dos soldados passavam a ser selecionados por superiores, que premiavam com os “melhores sonhos” aqueles que se sobressaíssem em suas tarefas. Tudo isso demonstra um tipo específico de controle definido por Perrow (1986 APUD Silva 2003) como completamente não intrusivo, onde a organização (no caso o exército) controla a cognição dos atores.
Com o desenrolar da história, ainda descobre-se que na verdade as baratas são seres humanos chamados de tal forma apenas por preconceito, e os chips alteravam a forma como os soldados os viam para que se tornasse mais natural o homicídio. O argumento para isso era de que seria muito mais fácil matar um ser que representa uma ameaça para a sua espécie do que outro membro da própria espécie.
É perceptível que os motivos para as batalhas que os soldados precisam travar durante o episódio estão calcados em uma visão institucionalizada de um povo que vê outro como inferior. Pode-se explicar a ocorrência dessa situação por meio da tendência política da perspectiva institucional que afirma que “os símbolos, rituais, cerimônias, relatos e dramatizações na vida política trazem coerência interpretativa à vida política da sociedade contemporânea” (Carvalho, Lopes e Vieira, 1999). As baratas são um forte símbolo já institucionalizado de um povo inimigo, e este símbolo passa a ser utilizado como forma de dar coerência para a ocorrência de uma guerra, servindo inclusive como base para a distorção cognitiva que serve como forma de controle dos soldados em campo de batalha.
Silva (2003) argumenta que o estado possui um grande controle centralizador representado pelo modelo burocrático, este que está “em grande parte inserido nas novas tecnologias de informação e gestão, que permitem uma vigilância a distância”. Ele é suportado por mecanismos normativos que dão grande ênfase à cultura e ao compartilhamento de uma visão de mundo dominante. E é possível notar esse suporte da cultura para o controle estatal durante o episódio, no momento em que é revelada a entrevista feita com Stripe antes da instalação do chip. Ele apenas aceita passar por essa dominação pois já é adepto ao preconceito culturalmente instaurado.
Por fim, ainda é possível discutir a relação de poder que o exército tem sobre o soldado. De acordo com Morgan (2006) “o poder é o meio através do qual os conflitos de interesse acabam resolvendo-se”. Ao final do episódio vemos que mesmo descobrindo toda a verdade Stripe prefere manter-se alienado pela instituição, uma vez que a verdade seria difícil demais de se lidar naquele estágio, e essa torna-se a resolução do problema apresentado – explicitando que o detentor do poder sempre foi o exército, pois seu interesse é o que se impõe.
Dado o exposto, conclui-se que “Men Against Fire” apresenta de maneira singela, porém expressiva, a discussão sobre relações de poder para o grande público, sendo uma obra recomendada para que estudantes sobre o tema estimulem seu pensamento crítico.
PS.: Texto originalmente feito para a disciplina de Teorias Organizacionais II da faculdade de Administração UFRGS 2019/2.
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CARVALHO, Cristina Amélia Pereira de; LOPES, Fernando Dias; VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. Contribuições da Perspectiva Institucional para Análise das Organizações. Maringá: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração, 1999.
MORGAN, Gareth. Imagens da Organização. São Paulo: Editora Atlas, 2006.
PERROW, C. Complex organizations — a critical essay. New York: McGraw Hill, 1986.
SILVA, Rosimeri Carvalho de. Controle organizacional, cultura e liderança: evolução, transformações e perspectivas. Rio de Janeiro: Revista de Administração Pública, 2003.
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