No mundo nerd, muito se ouve falar sobre o filme Joker nos últimos meses. Acusada por muitos de servir de gatilho para pessoas com problemas psicológicos e apresentar uma visão empática para com a situação do palhaço assassino, a produção de Todd Phillips trata de assuntos delicados com uma perspectiva nunca antes vista e chama atenção por conseguir levar ao público uma sensação muito específica: incômodo. Acontece que já vimos essa história ser narrada tantas vezes e das mais variadas formas, então como pode pela primeira vez sentirmos um completo desconforto assistindo a esse filme? Bom, é o que vou tentar explicar agora.
Antes de iniciar fica o aviso de que esse texto trará spoilers, portanto veja o filme antes de continuar lendo. Ou não.
Antes de qualquer coisa é necessário entendermos alguns conceitos básicos para esse ensaio: a empatia e o altruísmo. De acordo com Comte (1798-1857), altruísmo é a tendência ou inclinação de natureza instintiva que incita o ser humano à preocupação com o outro. Já empatia, em psicologia, é o processo em que o indivíduo se coloca no lugar do outro e, com base em suas próprias suposições ou impressões, tenta compreender o comportamento do outro.
Para exemplificar os dois termos podemos colocar a seguinte situação simples, você vê alguém caindo no chão e torcendo o pé. Em um primeiro momento você se preocupa com o que aconteceu e tenta ajudar (em uma ação altruísta) e, em um segundo momento, ao notar o pé torcido, você imagina a dor que a pessoa pode estar sentindo (em uma ação empática). Entendido esses dois termos podemos voltar ao filme.
"Joker" apresenta Arthur Fleck, um comediante em busca da carreira de sucesso no standup comedy que sofre com uma malformação cerebral que faz com que o personagem ria em situações adversas, como em momentos de grande tensão, tristeza, raiva, etc. Morador de Gotham, uma cidade passando por um caos quase anárquico, acompanhamos a jornada de Fleck em busca de sua carreira em meio a espancamentos, abusos morais, falta de apoio para saúde, e diversos outras graves situações expostas no filme. É importante entender que este é um filme de personagem, ou seja, é uma obra não focada em apresentar um grande enredo, mas sim em apresentar o desenvolvimento do seu personagem principal, Arthur. É uma história focada em mostrar como aquele homem transformou-se no Coringa. E principalmente focada em nos fazer sentirmos como é estar na sua pele. Para fazer isso ocorrer o diretor abusa do público. Sim, exatamente, abusa de você! Vejamos.
Em artigo de 2016, Medeiros discute Narrativa Ficcional, Empatia e Altruísmo, e nele apresenta duas teses a serem discutidas:
T1 - a leitura de narrativa ficcional potencializa a capacidade de
projeção empática;
T2 - a projeção empática, potencializada pela leitura de narrativa
ficcional, motiva ações altruístas.
Em seu trabalho apresenta diversos autores para amparar as duas teses e discutir primeiro: se elas são verdadeiras; e (assim sendo) segundo que o papel da literatura de ficção na educação moral seria mais efetiva se não depender de teorias sobre o funcionamento da empatia.
No estudo é citado Gregory Currie, que no artigo The Moral Psychology of Fiction
(1995), desenvolve uma distinção entre primary e secondary
imaginings.
"Imaginações primárias seriam as atividades mentais necessárias para compreensão do que está sendo narrado em uma ficção. Leio o texto e imagino o que está descrito. Um corredor sombrio, por exemplo. Imaginações secundárias são as simulações que o leitor realiza para colocar-se na situação descrita na ficção. Se o leitor estivesse, por exemplo, atravessando um corredor sombrio quais seriam seus pensamentos, sentimentos e atitudes?" Medeiros (2016)
Entendamos como as duas imaginações são utilizadas dentro de "Joker". Por exemplo, na primeira cena do filme, Arthur é roubado por um grupo de garotos que saem correndo com a placa que ele estava segurando enquanto trabalhava. Ao alcançar o grupo ele é espancado e deixado sozinho. Se você estivesse nessa situação, como você se sentiria? Situações extremas como essa ocorrem com Arthur o tempo inteiro e, o sentimento que em um filme comum acabaria sendo esquecido algumas cenas mais tarde, se reforça em todos os momentos, se acumulando.
Assim, o filme se aproveita de nossa empatia e - de maneira quase behavorista - apresenta o tempo inteiro estímulo para que continuemos em estado de tensão constante, pois nós preenchemos os espaços deixados pela obra com nossas crenças e capacidades morais já adquiridas e passamos a incorporar a situação pela qual o personagem está passando. Ainda de acordo com Medeiros (2016)
"nesse sentido, a narrativa ficcional participa de nossa vida moral não pela aquisição de novas crenças ou sentimento morais particulares, mas pela oportunidade de exercitá-los em cenários hipotéticos, oportunizando aprofundar nossa compreensão dos mesmos, aplicando-os a casos particulares apresentados pela narrativa"
Tudo obviamente se potencializa com a atuação de Joaquin Phoenix, que entrega um personagem capaz de gargalhar com as músculos faciais mais baixos e chorar com os músculos na linha da testa, expressando de maneira maestral o sentimento do personagem.
A escolha de assuntos também é fator determinante para que o filme nos toque, pois são todos assuntos frequentemente discutidos nas grandes mídias (sejam TVs e jornais ou em redes sociais) como o suporte do governo para pessoas necessitadas e depressão, por exemplo. O uso de assuntos cotidianos dá um senso de familiaridade àquele mundo distópico, o que nos coloca ainda mais dentro da história.
Por fim, o altruísmo é o ponto que dá o toque final à Joker, pois Arthur Fleck é vendido como um coitado. Sem sucesso em sua carreira profissional, com problemas ao tentar cuidar de sua mãe, dificuldades em fazer amigos e ter um relacionamento, Arthur desperta no público uma vontade de ajudá-lo a superar os obstáculos, mas não de maneira consciente, e sim utilizando-se do altruísmo, que como dito anteriormente é "é uma tendência ou inclinação de natureza instintiva".
É claro que em determinado momento do filme tudo o que foi dito se inverte e passamos a ver Arthur como o personagem assassino e psicopata como é conhecido o Coringa. E a partir daí o incômodo passa a ser por conta da violência extrema, da vontade de rir (mesmo sabendo que é moralmente errado) na "cena com o anão", da completa distopia que está se transformando Gotham, mas até lá todo o processo de empatia já ocorreu, e não se pode voltar atrás.
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REFERÊNCIAS
CURRIE, G. The Moral Psychology of Fiction. Australasian Journal of Philosophy, 73:2, p. 250-259, 1995.
MEDEIROS, Eduardo Vicentini de. Narrativa ficcional, empatia e altruísmo. Curitiba: Revista Letras, 2016.
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