Na última semana peguei na biblioteca da faculdade o livro Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman. O mais famoso livro do escritor polonês é o terceiro de uma série que começa em "Globalização: as consequências humanas" e "Em busca da política" e conclui a análise brilhante sobre a vida das pessoas nos tempos atuais.
A obra dividida em cinco capítulos (além de prefácio e posfácio) analisa separadamente: Emancipação, Individualidade, Tempo/Espaço, Trabalho e Comunidade, e defende uma ideia de mundo em que as coisas não são mais colocadas em caixinhas, e sim são fluidas e mudam o tempo todo (em um resumo absurdamente simplista). É uma leitura que vale principalmente para quem já tem um entendimento de autores clássicos da sociologia (em especial Marx, Weber, Durkheim e Foucault), e enfim, lendo apenas o prefácio você já fica surpreso com a genialidade do autor que conseguiu prever há 20 anos como estaríamos nos comportando na "época da instantaneidade".
Porém, para esse texto eu gostaria de trazer apenas um trecho tirado de contexto.
"Ser Leve e Líquido". É assim que Bauman inicia Modernidade Líquida. Em suas páginas iniciais, o autor nos prepara para compreender o que está defendendo no decorrer da leitura em um prefácio, e logo de cara temos que
[...] os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas "por um momento". Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. (BAUMAN, Zygmun. 2001. Pág. 8)
Essa seria uma das razões para considerar "liquidez" (e até "fluidez") como uma metáfora adequada para "capturar a natureza" da sociedade atual. Que, como defende, é nova na história da modernidade em muitas maneiras.
Esse excerto me chamou muita atenção durante a leitura por um motivo bem simples: ao ler, lembrei imediatamente de Inception. Mas "o que caralhos esse texto tem a ver com Inception?" você poderia me perguntar. Primeiro precisamos de um contexto.
Um dos melhores filmes da história. Vejam essa obra prima |
Inception conta a história de Don Cobb, um homem capaz de entrar no sonho das pessoas para roubar informações. Um dia ele é contratado para fazer o trabalho contrário, entrar no subconsciente de uma pessoa para deixar uma informação lá e fazer com que as opiniões de um garoto prestes a ganhar um império de energia mude, fazendo-o vender partes dele e não dominar o mundo.
Eu sei que expliquei de maneira boba, mas o filme é basicamente isso aí. No entanto, a maneira com que tudo é narrado é simplesmente genial. No decorrer da trama nós não sabemos exatamente se o que vemos é um sonho ou realidade. As duas coisas se misturam de tal forma que podemos até nos perguntar até que ponto os sonhos não são uma realidade.
A forma com que o subconsciente humano é tratado em Inception nos apresenta fisicamente, ou seja, no espaço, algo que não estamos acostumados sequer a pensar a respeito. O roteiro, em conjunto com as atuações e a direção maestral de Cristopher Nolan fazem com que o filme nos prenda do início ao fim, e ao término é impossível de deixar de pensar por algum tempo: "o peão caiu ou não caiu?".
Agora, voltemos à Modernidade Líquida. No decorrer do prefácio, Bauman (1999) ainda explica que em determinado momento da modernidade, as noções de tempo e espaço passaram a ser duas coisas distintas, ao contrário das civilizações anteriores que encaravam o tempo e o espaço de maneira única. Dessa forma, o tempo é encarado com certo "peso" por conta da "História" e o espaço é modificado a nosso bel-prazer por diversos motivos.
Acontece que em Inception, as noções de tempo e espaço são distorcidas para nós. E essa é a graça do filme. As duas coisas tornam-se uma só. Quando o grupo está dentro de um sonho, ou dentro de um sonho dentro de um sonho, ao nessa dinâmica ao cubo, o tempo vai se modificando, de forma com que segundos na vida real tornam-se semanas na realidade que eles estão sentindo. Compreender que tempo e espaço são uma coisa única, como defendia Einstein (1905) (e como civilizações ditas "não-civilizadas" compreendem o mundo há milênios, mas aí é outra discussão), é parte essencial para a experiência do filme.
O mesmo ocorre em Interstellar. Só podemos compreender trechos como a descida de Cooper ao planeta repleto de água justamente tendo um conhecimento mínimo da teoria de Einstein (1905). Após termos esse conhecimento, que em geral, só adquirimos depois de entrar em contato com a obra ou alguma parecida - porque, novamente, não é algo que estamos acostumados sequer a pensar a respeito - o filme fica realmente divertido. E pra muitas pessoas torna-se um dos melhores filmes da vida. E é aí que vem minha reflexão.
Nosso fascínio por filmes como Interstellar é um reflexo da Modernidade Líquida? Como dito por Bauman (1999), a modernidade separou os conceitos de tempo e espaço na nossa civilização (a chamada ocidental, em uma inacreditável abrangência geográfica). Após termos superado uma modernidade sólida, que diminuía o significado do tempo, passamos para uma modernidade líquida, que por sua vez diminui o significado do espaço. Seria então esse o motivo de obras que mostram que os dois conceitos na verdade são relacionados nos atraírem tanto? Essa falta de referências que mostrem essa visão diferente do mundo? Porque, vejam bem, citei os dois filmes do Nolan, mas poderia citar diversos outros filmes com viagem no tempo ou que desbravam o universo do subconsciente humano de maneira parecida com Inception. Todas obras "mind blowing" adoradas por público e crítica.
Como todo ensaio que faço, talvez eu não tenha capacidades intelectuais ainda para responder essa pergunta. E não sei exatamente quanto tempo demoraria para alguém (ou um grupo de pessoas) conseguir responder. Infelizmente Bauman não está entre nós para fazermos essa pergunta. Que pena.
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REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmun. Modernidade Líquida. 1ª Edição Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
EINSTEIN, Albert. On The Electrodynamics of Moving Bodies. Annalen der Physik. Berlim: 1905.
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